Os Gatos de Bukowski

Sei de muitas pessoas que não gostam de gatos. Sentem desconforto frente a eles, têm-lhes mesmo repulsa, aversão, ganas de exterminá-los.
À parte serem uns canalhas dignos de forca, pudera. O ser humano tende a repelir e a odiar com todas as suas forças tudo o que não compreende, o que não consegue controlar e subjugar, do que morre de inveja.
O ser humano não compreende o gato, sequer tem a certeza de como tenha se dado a aparente domesticação do elegante animalzinho. Enquanto o cão doméstico surgiu concomitantemente em várias regiões do planeta, a origem do gato caseiro teve um único epicentro, de onde, depois, foi levado a outras plagas : o antigo Egito, em plena aurora dos faraós, e deles era dileto mascote, compunha até o panteão de seus deuses, havia uma deusa-gata.
Quem garante que os gatos não nos chegaram a bordo das mesmas naves intergalácticas que por aqui desembarcaram faraós e deuses egípcios, ou, pelo menos, que não tenham por eles sido engendrados a partir da modificação genética de uma espécie nativa? Os gatos são enigmas, são pirâmides que deslizam fidalgas sobre quatro almofadadas patas.
Não há sequer indícios seguros de que o homem tenha domesticado o gato. Todos os animais que o homem domesticou, fê-lo para imputar algum fardo laborial ao bichinho, fê-lo com intenção puramente utilitarista. O cão, para a guarda e defesa da tribo e como auxiliar nas caçadas; o cavalo, transporte e força motriz; o gado bovino, carne, leite e couro para vestuário.
E o gato? De que uso prático e mundano é o gato para o homem? Com que intenção o homem o teria domesticado? A resposta é : o homem não domesticou o gato, não o convidou à sua casa. Se alguém é de utilidade para alguém, é o homem para o gato.
O provável é que o gato - ardiloso, manhoso e velhaco que só ele - tenha se oferecido em domesticação, de olho em abrigo e comida; o provável é que o gato tenha se convidado a entrar em casa humana e, com seu jeito discreto, furtivo, come-quieto, foi ficando, ficando...
Ao contrário do que ocorreu ao cão, ao cavalo etc, o homem não selecionou no gato as características de seu interesse - não havia nenhuma que fosse - : foi o gato que selecionou os humanos que se lhe prestavam à convivência. O homem foi escolhido pelo gato. O gato domesticou o homem para seus fins. Daí, a incompreensão do doutrinador doutrinado, o incômodo, o desejo, muitas vezes, de matar seu adestrador.
O homem, igualmente, não consegue controlar e subjugar o gato. O cão é um perfeito idiota babão, puxa-saco do homem; o homem diz, senta, e o bicho senta, diz, rola, e o bicho rola, joga um pedaço de pau e o bicho corre, pega e trás de volta, todo bobo alegre e festivo; por isso, o homem diz do cão o seu melhor amigo, o au-au faz tudo o que o bicho homem lhe ordena.
Alguém, por outro lado, já viu um gato adestrado? Ao comando humano, um gato se sentar, rolar, dar a pata e abanar o rabinho? O gato tá cagando pro homem. Experimente arremessar um graveto e ordenar que um gato o pegue. O bichano o olhará com um ar de indiferença, de enfado, virar-lhe-á as costas, sairá andando lânguida e sinuosamente, de rabo levantado, mostrando-lhe o cu, e aninhar-se-á em algum canto da casa, para uma boa soneca.
O gato não se prostitui pela ração barata que o homem lhe dá. O gato tem dignidade, tem amor-próprio. Eis outra grande evidência de que o homem não selecionou o gato, pois dignidade e amor-próprio são características que não lhe interessam selecionar em nenhuma espécie; nem nele mesmo.
E o homem morre de inveja dos gatos. Da liberdade noturna deles - gatos tem pirilampos por olhos, são pequenas luas argênteas, ágeis e com molas nas articulações -, de suas felinas distinção e elegância - por isso, por despeito, diz que todos são pardos -, de seus arrojo e leveza - gatos são tufos de paina com garras retráteis -, até da vida sexual dos gatos, o homem tem inveja - gatos são semideuses bacantes a fecundar os telhados.
Já eu, eu sou um entusiasta declarado dos gatos. Sou deles um confesso domesticado. Admiro-lhes a altivez, a galhardia, a graça fluida e esguia do andar. Encanta-me a independência deles. O cão, o dono tem que dar banho, ficar catando as bostas e lavando a urina espalhadas pelo chão, tem que levar pra passear etc, não faz porra nenhuma sozinho, o cão, um completo retardado. Com o gato, não tem nada dessas frescuras. O gato se banha com a própria língua e tem a refinada educação de enterrar seus dejetos - o gato é autolimpante. Já viram alguém a passear com um gato numa coleira? Claro que não. O gato traça suas próprias rotas, e não gosta muito de companhia ao caminhá-las. 
Independência, o seu nome é gato. Já viram alguém domesticado ser independente?
Arrebata-me, em definitivo, usufruir da luxuosa e discreta companhia dos gatos. O gato fica ali com você, mas na dele, não superlota o espaço com arfares, babares e ganidos. O gato é a melhor companhia que um solitário pode querer. 
Não à toa, o gato é o parceiro preferido dos grandes pensadores - afinal, quem é que consegue pensar em algo com um cachorro babando em sua perna e querendo brincar de ir pegar graveto? -, dos grandes escritores - os gatos são contemplativos, mesclas de solidão e melancolia.
Entre os aficionados por gatos, estão : Charles Bukowski, Truman Capote, Jorge Luis Borges, Ernest Hemingway, Neil Gaiman, Stephen King, Edgar Allan Poe, Patricia Highsmith, William S. Burroughs e Julio Cortázar.
Dos gatos, disse, certa vez, o velho sujo Bukowski, que chegou a ter nove de uma só vez : "Gosto de olhar os meus gatos, eles me acalmam. Eles me fazem sentir bem. Você sabia que os gatos dormem 20 das 24 horas do dia? Não se admira que tenham melhor aparência do que eu. Na minha próxima vida, quero ser um gato. Dormir 20 horas por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu. Os humanos são desgraçados demais, irados demais, obcecados demais".
Eu sempre tive gatos por animais de estimação. Corrijo : eles sempre me tiveram, sempre tive o privilégio de me elegerem para o seu dono de estimação. Houve a Quica, uma esbelta e delgada siamesa; nas madrugadas que eu varava a estudar para as provas da faculdade, ela se postava à minha frente, em cima da mesa, geralmente sobre um livro ou caderno, e ficava lá, em pé e imponente a me olhar, sem produzir único ruído, uma verdadeira estátua egípcia, uma pequena Bubastis.
Hoje, tenho duas gatas em casa, a Pretinha, exímia caçadora de beija-flores, e a Cleonice, minha parceira sempre presente e, no mais das vezes, imperceptível, como os gatos são mestres em ser. Estou na cozinha a preparar alguma comida e ela está a me observar, a me vigiar e guardar; estou a fazer faxina e ela segue o suado caminho da vassoura, a brincar e pular com os ciscos recolhidos do chão; se tiro um cochilo à tarde, ela vem se encostar em mim. 
Ao fim da noite, ou ao começo da madrugada, quando esposa e filho já estão a dormir, quando a própria casa ressona em profundo, geralmente me sento à sacada para contemplar a cidade, ouvir uma musiquinha, escrever minhas coisas, matar a última lata de cerveja, e a Cleonice vem. Pula em meu colo, roda, afofa meu colo com suas unhas e se enrodilha, sem peso algum. E fica. A ouvir minhas músicas, a escutar meus pensamentos... seu eu pudesse, sairia em desabalada carreira com ela pelos telhados.
Então, pego e leio um poema do Bukowski para ela. Não sei se ela entende, o que sei é que seu peito vibra e ronrona. E o meu também.
Bukowski e suas companhias prediletas : seus escritos, a birita e os gatos.

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2 Comentários

  1. Caro Azarão.
    Gostaria de me declarar fan dos seus textos. Depois que descobri seu blog, se tornou leitura obrigatória e prioritária.

    Com sua permissão, gostaria de compartilhar seu texto com meus amigos no facebook.

    Silvio Friederichs
    Rio de Janeiro - RJ

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    1. Cara, nada me honraria mais que isso!
      Fique à vontade! Compartilhe o quanto quiser!
      abraço e comente sempre por aqui.

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