Pequeno Conto Noturno (67)

Madrugada quente, seca e abafada de início de ano. Nem uma brisa. Nem um vento - ainda que também quente, como que saído de um secador de cabelos, como que enviado do inferno - sopra pelo apartamento de Rubens. Nenhuma nuvem. Nenhuma água de março candidata a fechar o verão. Umidade no ar, só a das transpirações de Rubens e de Yrina.
Rubens está só de cuecas, samba-canção, velha, desbotada, puída no saco e frouxa, sentado, escarrapachado no lado direito do sofá. Yrina, deitada com a cabeça no braço esquerdo do sofá, pés no colo de Rubens, só de calcinha, de algodão, com bolinhas amarelas.
Embora três ou quatro anos separem o último encontro desse, embora não tenham dado ainda a trepada reinaugural, embora os peitos fartos, túrgidos, irretocáveis de Yrina estejam à mostra, cobertos apenas por fina e luzidia camada de suor, não há faísca de erotismo no ar.
Rubens tira dois latões de cerveja de uma bolsa térmica ao seu lado, no chão, abre-as e passa uma para Yrina.
- Quase todas as noites, Rubens, saio por aí... acordo e vou dormir com os gatos, mas sempre acabo aqui, com você.
- Então, devo ter alguns sósias espalhados pela cidade. Pelas minhas contas, já se vão lá uns quatro anos.
- Sempre acabo aqui em pensamento, em intenção.
Os dois dão vigorosos e afoitos goles na cerveja.
- Acho que sempre saio - continua Yrina - com a esperança infundada - que você diria ser o único tipo de - de que o acaso me faça esbarrar com você por aí.
(na vitrola, Caetano Veloso, conta pra mim, diz como eu te encontro, mas deixa o destino, deixe ao acaso, quem sabe eu te encontro de noite no Baixo, brilho da lua oh oh oh, noite é bem tarde, penso em você, fico com saudade).
- Não saio mais por aí. Só por aqui.
- Eu sei - em tom triste, Yrina -, nesse tempo todo passei algumas vezes de carro por aqui, em frente do seu apartamento. No começo, as luzes estavam sempre apagadas, você fora, na rua, estava por aí, à procura de outras, deduzia eu. O que me causava um certo desconforto, mas, por outro lado, me dava certa esperança, pois entre essas outras, um dia, poderia estar eu. Depois, não muito tempo depois, eu passava e as luzes estavam sempre acesas, podia até adivinhar o seu vulto na sacada, bebendo, nunca pondo a cara pra fora, desinteressado de tudo o que havia e do que se passava na rua. Você, deduzia eu, não mais saía à cata de outras, estava enfastiado de todas. O que me dava um certo conforto, mas, por outro lado, me minava as esperanças, pois entre essas todas, poderia estar eu. Não sei o que mais me dói, Rubens. Você, caçador insaciável, ou, você, velho sentado no banco da praça, jogando damas, dando milho aos pombos.
(na vitrola, Zizi Possi, Oh meu amigo, meu herói, oh como dói saber que a ti também corrói, a dor da solidão...)
Rubens abre mais dois latões. Os últimos.
- Eu chego em casa, Rubens, de volta da rua, e está tudo lá, quando volto, me encontro em meio a papéis amarelados e garrafas de vinho derramadas. Não sei o que fazer com tantas lembranças. Penso em queimá-las, numa grande fogueira de bruxa. Mas, o mas... Sou apegada à elas. E, de qualquer maneira, terei que limpar as cinzas. O certo é que ficarão comigo. E, vez ou outra, as olharei de longe.
Rubens dá uma grande talagada, drena quase a lata toda.
- O que prefere, Yrina, o que te parece melhor? Fotos e poemas amarelados de saudade e de melancolia, ou folhas em branco, nunca dilaceradas pela pena, robóticas, clones gerados e mantidos em sarcófagos criogênicos de animação suspensa? Chorar sobre o vinho derramado, ou passar a vida toda como guardiã de uma adega nunca aberta? Lembranças de sangrar o cérebro e de assombrar a alma, ou uma lobotomia? Incômodos e, às vezes, nas piores noites, barulhentos esqueletos pendurados em seu guarda-roupas, ou urnas mortuárias com motivos orientais a ornar sua estante ou lareira?
- Prefiro fotos que não amarelem e poemas que não se tornem mentiras com tempo; garrafas de vinho que sejam abertas sempre à beira de um lago que guarde uma Atlântida submersa, em germinação; lembranças que confortem, ou, melhor, que nunca se tornem lembranças, que se perpetuem em realidade; e corpos e amores que não descarnem.
- Temo que tais opções, há algum tempo, não estejam disponíveis no cardápio.
- E por que não, Rubens? Não temos o livre-arbítrio? Não podemos decidir em função de nossas próprias vontades?
- Livre-arbítrio, para quem acredita nisso, Yrina, é só o poder de decidir entre as opções que são postas à nossa frente. Não o poder de decidir sobre quais serão essas opções. Livre-arbítrio não é o poder de estabelecer os pratos do cardápio, só de escolher, entre os determinados pelo Chef, o que mais se adequa ao seu gosto, ao seu bolso, aquele pelo qual você decide que vale a pena pagar pra ver, aquele pelo qual você se arriscaria, inclusive, a ter uma indigestão, uma infecção intestinal.
- Livre-arbítrio, então, Rubens, é escolher entre o ruim e o tragável, entre o impossível e o pouco provável, entre o impensável e o moralmente duvidoso, entre o coma e a morte?
- Aí é que está a grande sacanagem, a grande pegadinha de Deus, Yrina. E como ele deve se divertir nos observando em suas câmeras escondidas.
- E se eu rejeitar todas as opções oferecidas? Se declarar solenemente que nenhuma me serve?
- Nenhuma das alternativas anteriores? N.D.A, a alternativa "e", feito nos antigos exames de vestibular? Não tem alternativa "e" na vida, minha linda, não tem n.d.a. Também não tem resposta certa. Todas são ambíguas. Não tem também como pedir anulação da questão.
- E se eu rejeitar o livre-arbítrio? Não quero mais essa merda.
- Acha mesmo que tem o livre-arbítrio para abrir mão do livre-arbítrio?
- Me declaro, então e desde agora, uma ateia - bravateia Yrina, e seca o último gole do latão.
- Yrina, olha pra mim, olha bem pra mim... acha que ser ateu resolveu alguma coisa pra mim?
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- Tem mais cerveja, Rubens?
- Essa era a última.
- E quais opções temos agora?
- Rum, uma garrafa cheia embaixo da pia da cozinha.
- Só rum? Isso é uma única opção.
- Como na maioria das vezes.
- Sem gelo e com gelo, pelo menos?
- No copo ou no gargalo.

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3 Comentários

  1. Rum jogado nos peitos de Yrina, que está deitada e apoiada em dois travesseiros, escorre até sua vagina e é tomado com lambidas suculentas.

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    1. Rídiculo! Não percebeu que esse conto nada tem de carnal ou erótico? Só de desgaste, desesperança e falta de caminhos?

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    2. A pessoa não tem noção da sutileza do conto.

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