Um Dia na Vida (7)

Meio-dia e poucos, o sol a pino providencialmente tirado de cena por um dia que resolveu se trajar de galena, o homem velho, com o seu brilho também nublado, porém, pelas décadas, vinha descendo a rua com uma sacola plástica quase transparente na mão, seu almoço acondicionado em um marmitex de isopor comprado ao restaurante da esquina.
Sessenta, sessenta e poucos, talvez; barba e cabelos de um branco que não há muito vencera e expulsara de vez o grisalho, bem aparados e penteados, compleição física ainda com memória recente de uma definida rigidez, barriga de um convexo comedido, não imoral, fora, provavelmente, um homem bonito quando jovem, diriam as más-línguas, fazendo-se de boas.
Aura de respeitabilidade, vinha descendo a rua, o homem velho, com seu almoço em direção ao seu carro estacionado sob uma espirradeira - nem de luxo nem popular, o carro; carmim, as flores da espirradeira. Semblante de uma vida estável e tranquila, o do homem velho, tanto economicamente quanto nas relações pessoais, ares de quem bem cumprira com a vida. Que aura de respeitabilidade, um bom carro, conforto financeiro e emocional e sensação do dever cumprido é o que a vida dá em troca pela juventude dos que a ela se resignaram e bem serviram. Feito empregador que, de uma hora pra outra, sem aviso prévio, passa a nos pagar em reais o que antes recebíamos em euros.
Ela vinha subindo a mesma rua, pela mesma calçada que o homem velho, vinte e poucos anos de idade, se muito, blusa com o nome de uma empresa de contabilidade bordado no lado esquerdo à altura do seio, apressada, seguramente em sua corrida hora de almoço, e com o indefectível e apaspalhador celular na mão, capa rosa com motivos florais.
Não exatamente bonita, ela; vê-se que nunca o fora nem nunca o será, porém, envolta por uma impossível de se ignorar aura de hormônios e de viço, naquela fase em que a Natureza, independente de ter acertado ou não no molde e no acabamento, torna suas fêmeas em um chamariz à reprodução.
O homem velho, já com a chave a abrir a porta do carro, viu a moça e estacou. O carro sumiu. Sumiram o peso do marmitex em sua mão, o pavimento da rua, o movimento do tráfego, os sons dos motores, das buzinas, dos cachorros, da obra em construção, as cores da espirradeira, das roupas, dos muros e das fachadas das casas, dos folhetos de propaganda abandonados ao chão, do céu. Sumiram o ar e a própria necessidade de respirar.
Ela atravessou para o outro lado da rua a alguns passos de cruzar com o homem velho. Notou-o tanto quanto à espirradeira, aos sacos de lixo depositados nas calçadas, aos buracos da rua, à enxurrada da chuva recém-finda a minguar, ao poste de iluminação pública, ao gato na varanda da casa a lamber o próprio cu, à mulher que varria as folhas da calçada.
Ela (para o homem velho) : a recondensação do Universo, uma nova singularidade prestes a parir o Big Bang;
O homem velho (para ela) : invisível.

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9 Comentários

  1. Ou seja, o texto é você observando uma moça bem mais jovem na rua.
    Você desejando uma carne tenra e nobre, e ela nem aí para o vovô.

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  2. Old man, "oldman", suave ironia que sugira um tipo de super-herói, aquele tipo cueca amrela por cima da calça. E nosso anti-herói favorito Rubens assistindo tudo isso da sua janela. Gosto muito dessa sua série Um dia na vida, descrições e discrições.
    "J"

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    1. Sim, Rubens assistindo a tudo isso de sua sacada! Ao meio-dia, emborcando uma. Rubens, ora personagem, ora cameraman; ora inquirido, ora vigia.
      Que bom que tenha sacado!

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  3. Nossa!!!! Que texto demais!!! Quisera tê-lo escrito!! Pura poesia!
    JB

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    1. Também gostei desse. Eu levo meu filho no médico, dentista, natação etc e tenho que ficar lá esperando. Ler revista velha de subcelebridades, não gosto, só de olhar as gostosas da capa. Celular, não tenho e, aliás, tenho sentido (e é sério)nos últimos tempos um grande mal-estar quando estou nesses lugares e fico rodeado por imbecis com seus celulares na mão, me dá uma espécie de sufocamento, uma versão mais leve, talvez, de claustrofobia.
      Aí, arrumo um cantinho pra mim, longe do populacho, da patuléia, da choldra ignóbil, abro meu caderninho e me ponho a escrever.
      Às vezes, como nesse caso, sai alguma coisa que presta. Esse, claro que a ideia já estava esboçada na cabeça, escrevi ontem, no consultório da dentista do meu filho, enquanto a recepcionista e mais duas outras(as três bem barangas)discutiam sobre qual chá "derretia" mais gorduras, se o verde, se o de gengibre, se o de hibisco...
      Quase que entro na celeuma e digo que o chá de que elas estavam precisando era o de rola, o famoso chá de pau barbado.
      Sorte que meu caderninho sempre me ampara e me acalma nessas horas.

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    2. não seria "chá de pau babado"?

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  4. Entendem bem de chás de paus, hein?

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    1. Se quiser, eu posso servir o seu com um pouco de leite, ou de creme.

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