Meu Fardo, Abraço-te de Bom Grado

Assim como outros inúmeros vocábulos da nossa Língua, a palavra fardo foi destituída de seu sentido primeiro, desterrada de sua essência, teve seu significado ampliado e seu uso transferido a novos conceitos, passou a ser metáfora e alegoria para outras situações e contextos, no mais das vezes, distantes e desvinculados da ideia original.
Denotativamente, segundo a edição eletrônica do Dicionário Houaiss, que eu pirateei da net, fardo significa : qualquer tipo de embrulho, pacote ou volume; objeto ou conjunto de objetos mais ou menos volumosos e pesados que se destinam ao transporte; carga.
Ou seja, um fardo é o resultado de um ajuntamento lógico de objetos semelhantes, de uma compactação sistemática, de uma organização para melhor acomodamento, transporte, aproveitamento de espaço, enfim, de um método para a facilitação de uma tarefa.
Pela lógica, era de se esperar, portanto, que um uso figurado de fardo remetesse e fosse aplicado e associado a um quadro de planejamento, ordem e clareza, que conotasse controle, funcionamento e eficiência, se não máximos, ao menos, maximizados, um contexto desejável, portanto.
Mas não. Fardo teve subvertido o seu sentido original, pervertido, até. Fardo foi conotado não pelo que é - o produto final de um trabalho -, mas pela dificuldade em realizar esse trabalho, pela faina em produzi-lo. Fardo passou a ser usado, na esmagadora maioria das vezes, como aquilo que é difícil ou duro de suportar, penoso, árduo; aquilo que impõe sérias responsabilidades. Ou seja, algo não desejável, a ser evitado. Tomou-se o produto pelo processo.
Pela lógica... iniciei um dos parágrafos anteriores, subentendendo, pretensiosamente, a humana, como fosse a única. Ocorre que a lógica humana não vale de porra nenhuma, é só uma outra nossa ilusão, um outro nosso construto, feito deus.
Há apenas e tão-somente a lógica do Universo. E ela se nos impõe imperativamente, ainda que não percebamos, ou que não admitamos. O Universo se pauta pela miníma entropia, pelo menor gasto possível de energia na solução, na manutenção e gerenciamento de uma situação, seja na órbita de um elétron em torno de seu núcleo, seja na orquestração de uma galáxia.
Dizem, inclusive, o ser humano, é claro, que o Universo prima pelo caos, pela desordem. Outra vez, a empáfia dos ignorantes : o Universo tem uma ordem que não conseguimos reconhecer como tal, que não conseguimos decifrar, logo, a taxamos de desordem, de caos.
O que demanda mais energia, deixar ramos, galhos, capim espalhados pelos campos, montes e pradarias, ou recolhê-los, um a um, organizá-los num só volume e amarrá-los de forma compacta? A resposta é óbvia.
O nosso modelo de organização contraria as diretrizes do Universo, por isso, manter a (nossa) ordem é sempre cansativo, penoso e árduo, em suma, um fardo. Autoproduzido e autoimposto.
Há também, veio-me agora, o "eu me fardo", presente do indicativo do verbo pronominal fardar. Civis ou militares, todos nos fardamos. Fardar-nos vai muito além do que meramente vestimos, é a maneira como nos organizamos, como nos compactamos e nos amarramos dentro de um personagem em cuja pele nos apresentamos em público, nos ambientes que frequentamos e pelos quais trafegamos, seja por vontade própria, seja por obrigação, imposição. Construir e morar num personagem, numa farda, requer atenção e manutenção constantes, demanda imenso gasto de energia, em suma, um fardo.
Há, porém, um fardo que me é dos mais suaves. Um fardo que não faço amuo nem zanga nem azedume em carregar. Ei-lo :
Meu fardo, abraço-te de bom grado!
E não pensem que um fardo de cerveja é carga das mais leves e jeitosas de se carregar. Os de dezoito unidades, então... E os de latões de 550 ml? Acham que é fácil, para mim, que não dirijo, carregar tal fardo na mão, pelos quarteirões que separam o mercado de minha casa?
Mas eu resisto, eu persisto sem reclamar. Sou um abnegado. Contribuo com minha parte em carregar o fardo que, enfim, é a porra da vida.

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