Todo Castigo Pra Corno é Pouco

Ele não consta do, mas deveria. O corno, do Dicionário do Folclore Brasileiro, do Câmara Cascudo.
O corno é a figura folclórica mais representativa do Brasil, por sua abrangência, por seu caráter democrático e irrestrito.
Ao contrário dos outros entes de nosso esquecido imaginário popular, o corno não se limita a essa ou a aquela região, como, a exemplos, o Boi-Tatá, da região Norte, ou o Negrinho do Pastoreio, dos pampas gaúchos. O corno pulula por todo o território nacional.
E também não necessita de condições especiais e cabalísticas, não tem que fazer lua cheia para o corno aparecer, não tem que ser o sétimo filho homem nascido em ninhada de seis filhas mulheres, nada disso. Seja dia ou noite, faça sol ou chuva, frio ou calor, seja nos cerrados capoeirões e brenhas ou nos grandes centros urbanos, o corno está lá. E ele pode inclusive ser você. E geralmente o é.
O corno é patrimônio cultural da nação de Pindorama! Tombado como patrimônio cultural imaterial, ele deveria ser. De nossa pobre cultura tupiniquim, uma de suas mais fortes expressões, a música. Da música, o seu sumo alicerce, o corno. 98,2% do nosso cancioneiro popular é fundeado no corno. 
E não há distinção ou predileção por esse ou por aquele gênero musical. Do sertanejo ao samba, do rock à bossa nova, do brega ao cult : todo mundo já foi corno, e cantou sua ode ao chifre. De Amado Batista a Cazuza, de Lupicínio Rodrigues a Reginaldo Rossi, de Tom Jobim a Chitãozinho & Xororó, de Ângela Rô Rô a Tiririca, de Waldick Soriano a Renato Russo, de Roberto Carlos a Alípio Martins, de Fábio Jr. a Sidney Magal etc etc.
Até Chico Buarque, pasme corno amigo, já foi corno! Mais que conformar-se - qualidade inata a todo corno -, rejubile-se, corno amigo : sim, já teve mulher que botou galhada em Chico Buarque. Por que você, então, estaria imune ao chapéu de touro? Não está. Ninguém está. E nem adianta querer evitar, ficar com receio de ser corno, que chifre é feito assombração, geralmente aparece para quem mais tem medo.
Há tempos que pretendia inaugurar essa nova seção no blog, Todo Castigo Pra Corno é Pouco, mas fui protelando, protelando, e hoje, enfim, ela saiu.
Optei por inaugurá-la com um verdadeiro clássico da cornagem moderna, a canção Deslizes, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, eternizada na voz de Raimundo Fagner. E há uma explicação para a escolha : inicialmente, odiei Deslizes, e fiquei puto da vida com Fagner por tê-la gravado.
Fagner estourara no cenário nacional com a belíssima Noturno - o aço dos meus olhos e o fel das minhas palavras -, amigo e conterrâneo dos poetas Belchior, Ednardo e Ricardo Bezerra, musicara poemas de Florbela Espanca, Fernando Pessoa e Cecília Meireles, cantara com ninguém mais ninguém menos que Mercedes Sosa.
Que porra era aquela agora? Gravar os reis do pop brega Sullivan e Massadas, que, entre outras desqualidades, eram os fornecedores dos maiores sucessos da Xuxa?
E que merda era aquela de "e é só assim que eu perdoo os teus deslizes"?, que merda era aquela de que levar chifre era "assim o nosso jeito de viver"?
Troquei de mal com Fagner. Passei anos sem ouvi-lo.
O ano era 1986 ou 1987, eu com meus poucos e inexperientes 18 ou 19 anos, tímido que sempre fui, sem nada conhecer das artes e artimanhas e, principalmente, dos ardis e arapucas do amor. Sem conhecimento de causa, fui por demais severo em meu julgamento para com Fagner. Com os anos, fui perdendo minha timidez - na verdade, aprendendo a contorná-la. Vieram os amores, as bucetas e os chifres.
Aí, já se ia o ano de 2000, eu morando sozinho, em uma cidade estranha, um sabadão solitário, a meio caminho de matar a segunda garrafa de vinho Canção, rádio ligado na madrugada e o disc-jockey mandou lá Deslizes. Aí, a ficha caiu. Aí, o entendimento do clássico se me deu.
"Não sei por que insisto tanto em te querer...", porque o querer não é racional, é, muitas vezes, patológico, porque o amor não é coisa de mentes sãs, é mesmo brega e ridículo. "Pois aprendi que o meu silêncio vale mais, e desse jeito eu vou trazer você pra mim, e como prêmio eu recebo o teu abraço...", porque, como diz o genial Falcão (aliás, autor da música cujo título deu nome a essa nova seção do blog), é melhor comer doce de leite com os amigos do que uma lata de bosta sozinho.
Aumentei o volume do rádio, dei mais uma boa talagada no Canção, pus meu boné de viking, e, pelado que estava, saí pelo apartamento a cantarolar Deslizes. Fiz as pazes com Fagner.
E quanto a Deslizes, antes eu mudava de estação quando ela tocava. Hoje, a depender do dia e, sobremaneira, do grau etílico no sangue - em outros braços tu resolves tuas crises, em outras bocas não consigo te esquecer -, eu até choro.
E você, corno amigo, também não chora?
Deslizes
(Michael Sullivan/Paulo Massadas)
Não sei por que
Insisto tanto em te querer
Se você sempre faz de mim o que bem quer
Se ao teu lado sei tão pouco de você
É pelos outros que eu sei quem você é

Eu sei de tudo com quem andas
Aonde vais
Mas eu disfarço o meu ciúme
Mesmo assim
Pois aprendi que o meu silêncio vale mais
E desse jeito eu vou trazer você pra mim

E como prêmio eu recebo o teu abraço
Subornando o meu desejo tão antigo
E fecho os olhos para todos
Os teus passos
Me enganando, só assim somos amigos

Por quantas vezes me dá raiva te querer
Em concordar com tudo o que você me faz
Já fiz de tudo pra tentar te esquecer
Falta coragem para dizer que nunca mais

Nós somos cúmplices, nós dois
Somos culpados
No mesmo instante em que teu corpo
Toca o meu
Já não existe nem o certo nem errado
Só o amor que por encanto aconteceu

E é só assim que eu perdoo os teus deslizes
E é assim o nosso jeito de viver
Em outros braços tu resolves tuas crises
Em outras bocas não consigo te esquecer

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3 Comentários

  1. Muito bom, meu velho...muito bom mesmo! Mas...quem é que botou chifre no Chico Buarque, mesmo?

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    1. Rapaz, a inigualável obra do Chico é repleta de referências à cornagem, vide, só para dar dois exemplos, Olhos nos olhos e Trocando em Miúdos.
      Até aí alguém poderia dizer : mas o Chico é gênio, pode bem ser produto de seu talento imaginativo. Claro que o Chico é gênio! Porém, toda genialidade precisa de algo que a impulsione, de uma centelha criativa, de uma enzima que lhe catalise.
      E não tenha dúvidas : no caso do poeta, não há melhor gatilho que o bom e velho chifre.
      Mas mais especificamente dizendo, uma vez, em um dos incontáveis documentários e entrevistas do Chico a que já assisti, ele deixou escapar, meio que de leve, que a música Morena dos Olhos d'água faz referência a uma bela duma cornucopiada.

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  2. Não posso deixar vcs aviltarem a figura sagrada do Chico, pq ele pode até por acaso do destino ter sido premiado com o famoso adorno para cabeça, mas também tirou onda com "Aquela Mulher".
    #aceitaquedóimenos
    "J"

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